As consequências de uma guerra no Iraque

de Manuel Baptista

 

«Iraque-USA», foi o título dado a uma série de conferências proferidas por Manuel Baptista em Fevereiro de 2003, em Lisboa. Uma versão encurtada saíu no Nº198 d'A BATALHA. A versão integral encontra-se neste site, em tradução italiana.


As guerras são sempre acontecimentos históricos contingentes por definição e por natureza. Muito para além da possibilidade de perdê-las ou ganhá-las em termos militares imediatos, existe a possibilidade de as consequências a mais longo prazo serem de todo imprevisíveis. 

A derrocada do império soviético ainda está a gerar muitos remoinhos, devido a uma situação totalmente inédita, a da existência de um super poderio planetário, do ponto de vista militar, com intenção deliberada e planificada de o usar até onde for necessário para assegurar a conservação dessa vantagem.

I. Consequências económicas

A motivação dos EUA não é meramente o petróleo, ou melhor, é antes de mais a utilização do petróleo como arma para vergar as economias concorrentes doutras potências do mundo dito desenvolvido. Não se trata tanto do acesso directo a poços de petróleo do Iraque, trata-se sobretudo de privar de acesso fácil e directo seus concorrentes da Europa Ocidental e Extremo Oriente (Japão e Coreia).

No caso de uma guerra contra o Iraque, independentemente da velocidade a que o regime de Saddam se desagregar, vai dar-se um aumento do crude no mercado mundial para valores entre 40 e 50 dólares por barril. Esta subida não poderá ser compensada, para a maioria das economias da Europa Ocidental, com recurso a fontes próprias. Será excepção a Grã-Bretanha, com o petróleo do Mar do Norte, o que explica muito do posicionamento de Blair. Os restantes países, verão as suas economias depauperar-se rapidamente e passarão de uma situação de crescimento modesto, para uma recessão acentuada. As consequências disto, para os regimes "democráticos" da UE, são de todo imprevisíveis. Mas uma coisa é certa: os EUA estão apostados em que a UE e o euro se afundem. Porquê?

Aqui, é necessário explicar como funciona o sistema financeiro mundial. Sabemos que o dólar é a principal moeda de intercâmbio e de comércio mundial. Isto tem como razão profunda a confiança quase cega que investidores, desde as pequenas poupanças aos grandes potentados do petróleo (detentores de "petro-dólares"...), têm na meca do capitalismo mundial, os EUA.

Baseados nesta situação, os dirigentes verdadeiros dos EUA "inventaram" um meio de viverem e fazerem viver as camadas privilegiadas do seu país, à custa do resto do mundo. 

Desde há vinte anos, o défice comercial dos EUA vai-se acentuando, sem que haja um estancar do afluxo constante de capitais a Wall Street. Mas, esta situação começou a inverter-se desde Abril de 2001. As bolsas e mercados de capitais dos USA deixaram de ser tão atraentes para os investidores, há uma preferência acentuada por outras paragens... nomeadamente europeias.

Sob pretexto do 11 de Setembro, mas na realidade para favorecer a indústria "high-tech" e de armamentos, a administração Bush também está apostada em investir pesadamente em programas de investigação em armamento, o que vai acentuar o défice orçamental. Uma percentagem abismal dos impostos vai parar à indústria de armamento, que tem recebido encomendas do Estado para tais programas de "guerra das estrelas" e para nutrir os já repletos arsenais de armas "convencionais". 

O principal artigo de exportação dos EUA continua sendo o armamento . Por isso, é necessário fomentar guerras para manter a clientela e escoar os stocks.

Há três anos, com o nascimento do euro, começaram a modificar-se os dados do problema: este pode tornar-se amanhã a principal divisa nas trocas comerciais mundiais, destronando o dólar. É verdade que isso é apenas uma hipótese, mas tão grave para o papel hegemónico do capital financeiro US, que este se considera ameaçado. 

Basta pensar que Saddam lavrou a sua própria sentença quando, em 2000, se lembrou de converter as suas reservas de dólares em euros. Isso fez soar o toque de alarme nos "think tanks" do Império. Se tal exemplo viesse a ser copiado pelos restantes exportadores de petróleo - com grande excedente em dólares, devido ás royalties da venda do crude - iria gerar um enfraquecimento do dólar, donde um refluxo de capitais, uma fuga mesmo... isto seria a derrocada do poderio financeiro US sobre o sistema capitalista mundial. A Europa tornar-se-ia então receptora mundial dos excedentes de capitais gerados nas economias do resto do mundo.
Eis um poderoso motivo, sempre ocultado, para este furor bélico nos EUA: tem a ver directamente com a enorme fragilidade da economia US, neste momento.

Em termos de economia real, a situação nos EUA é mesmo de recessão. Os resultados dos principais índices de consumo são péssimos. Porém, o crédito ao consumo está baixíssimo, apenas se pode comparar o seu custo com ... o início da década de 60!

Enron, Worldcom, etc apenas são os "monstros" emblemáticos da crise. Há uma catadupa de falências, nomeadamente em grandes transportadoras aéreas e noutros sectores antes julgados "sólidos", independentemente da sensatez e "honestidade" dos seus conselhos de administração! 

Despedimentos colectivos nas grandes corretoras e nos bancos, com muitos indivíduos da classe média alta, a procurarem em vão emprego após uma falência ou despedimento envolvendo sectores inteiros das empresas, incluindo seus quadros superiores... eis o quotidiano da exangue "nova" economia...

Não há esperança dos capitais especulativos continuarem, no curto prazo, a alimentar no mesmo grau a economia US. Eles foram atraídos de todo o mundo, fornecendo capitalização bolsista das empresas "high tech" : a famosa bolha especulativa. Não há mezinha do Fed que permita paliar este descalabro. 

O governo Bush depende ainda, em grande parte, da adesão daquele conjunto de cidadãos americanos que, em vinte anos de vacas gordas, se tornaram viciados num sobre consumo e sobre endividamento descomunais. As produções industriais do resto do mundo só tinham um objectivo, nestes anos: exportar para os EUA, para satisfazerem o apetite desta camada insaciável (cerca de 5% das famílias).

Perante tal quadro, a "solução" guerra tem sido insistentemente apontada como saída por aqueles que manobram os lobbies mais poderosos dentro da administração Bush. 

A nível económico, portanto, a guerra tem como função travar a enorme descida do poder aquisitivo dentro dos EUA, dando uma "chicotada" nos sectores de ponta, associados à industria de armamento (o complexo militar industrial). Por arrastamento, os outros sectores seriam também estimulados. Claro que isto se faz á custa de enormes somas vertidas do orçamento federal, causando assim um défice orçamental muito acentuado, com tendência a acentuar-se ainda mais. Veja-se a megalomaníaca corrida aos armamentos que representa o programa conhecido como "guerra das estrelas". O orçamento da defesa actual atinge somas, em valores constantes, muito mais elevadas que as dos piores anos da guerra fria! 

Isto é o que se costuma designar como "keynesianismo de guerra".

 

II. Consequências geopolíticas

Com o chamado "eixo do mal" surgem os inimigos designados do Império, como forma de impor sua hegemonia mundial sobre todas as restantes potências. Porquê?

Comecemos pela Coreia do Norte: desta trágica sequela da guerra fria, esperam obter um meio eficaz de chantagem permanente sobre o Japão, a Coreia do Sul e sobretudo em relação à China. 

Se Pyongyang se mantiver uma ameaça "credível" aos olhos dos japoneses e coreanos do sul, não haverá dificuldade em manter as tropas US nestes países. Os EUA guardarão essas plataformas convenientes de ataque,quer em relação à China, quer em relação a países da Ásia do Sudeste que se lembrassem de desafiar o Império. Era justamente aí que estavam as principais bases de apoio logístico na guerra da Indochina (de 65 a 75)!

Quanto ao Irão: O regime dos ayatolahs humilhou os USA, forneceu uma base recuada para grupos islâmicos chiitas como o Hezbollah, que têm sido protagonistas contra o principal aliado de Washington na região, Israel. Devido a forças do Hezbollah, Israel teve de recuar pela primeira vez desde há muito, abandonando posições o sul do Líbano. Além disso, é o Irão que está mais próximo de se munir de armamento nuclear, de entre os inimigos de Israel, e portanto dos EUA, tendo a tecnologia necessária, os cientistas, além da riqueza do petróleo.

O facto de ter havido uma abertura e uma tendência de laicização tímida desse regime teocrático, também não é de molde a tranquilizar os EUA, pois a aproximação ao ex-inimigo do Iraque, tornou-se real após a guerra do Golfo de 91. Os restos da aviação iraquiana refugiaram-se em território Iraniano no epílogo da Guerra do Golfo.

Finalmente, o Iraque: Este é o inimigo mais conveniente a abater a seguir ao Afganistão, por vários motivos. 

Com o ataque e ocupação do Afeganistão, os EUA meteram "uma cunha" entre as republicas petrolíferas da Ásia Central e as potências que ainda são a Rússia e a China. A guerra do Afeganistão teve como principal motivação, destruir a aliança que se estava a forjar entre a Rússia, a China e as referidas repúblicas da Ásia Central, a qual chegou a ter um princípio de concretização com a assinatura de um protocolo de ajuda mútua assinado em Xangai, onde estes países se comprometiam a trocar informações, a conjugar vigilância das fronteiras, com meios militares comuns , etc. para "combater o tráfico de ópio e o fundamentalismo islâmico" mas, na realidade, com uma ambição muito maior, não confessada: a de constituir um eixo euro-asiático, no campo diplomático, económico e militar.

Por outro lado, tornava-se necessário dissuadir os "aliados" fundamentalistas sauditas de protegerem à socapa as redes da Al Quaida. Também, dar-lhes um sério aviso de que seria extremamente perigoso se porem a imitar Saddam, trocando suas enormes reservas em dólares por euros... 

O regime de Saddam Hussein não foi derrubado em 91, apenas porque o general Schwarzkopf recebeu ordens directas de Bush pai para parar a sua ofensiva "às portas de Bagdade"... Convinha um ditador enfraquecido politicamente, isolado no Mundo Árabe, num país esmagado sob um pesado fardo de sanções. Para servir como exemplo a não seguir.

Isso foi visto,aliás, como a única solução consentânea com os interesses imperialistas, visto que a partição formal do Iraque em três zonas (uma "cantonização" da Bósnia em escala maior) com um Norte curdo, um Sul chiita e um Centro sunita, iria criar instabilidade nos vizinhos aliados, Turquia e Arábia Saudita. 

Entretanto, o Iraque era, sem dúvida, um apoio importante à resistência palestiniana. Por isso, começou a ser planeado oderrube do regime de Saddam, para que Sharon pudesse levar a cabo a "solução final" em relação ao povo mártir da Palestina: a deportação em massa. Foi com base nesta esperança louca e criminosa que Sharon se fez reeleger por uma eleitorado sionista fanático e/ou atemorizado pelos ataques suicidas no território de Israel. 

Importa esclarecer que o apoio indefectível dos EUA de Bush aos desígnios genocidas de Sharon tem contornos de política interna americana muito importantes: os fundamentalistas cristãos dos EUA, a base do eleitorado bushiano, optaram por uma mudança de alianças que permitiu congregar parte da comunidade judaica, para apoiar o candidato republicano. É bem conhecido que os judeus americanos tinham como principal preferência eleitoral o partido democrático. Vários lobbies judaicos ainda têm ligação a este, mas essa ligação deixou de ser exclusiva. A oposição democrática, no senado e na câmara, deixou-se completamente enredar na operação da "cruzada patriótica contra o terror", votando todas as leis que fazem do regime actual dos EUA uma autêntica farsa de "democracia", anulando, na prática, os direitos civis. 

Após a "eleição" de Bush, ele e o seu séquito não se poderiam sustentar com menos do que com um "11-09" e todo o ataque subsequente às mais elementares defesas legais dos cidadãos! O apoio ou "neutralidade" dos lobbies da comunidade judaica no que toca à inflexão fascizante do regime dos EUA foi negociado, tendo como moeda de troca o apoio sem restrições a Sharon.

É muito provável que Sharon possa levar a cabo uma "blitzkrieg" contra os restos da autoridade palestiniana, depondo, expulsando ou assassinando Yasser Arafat, durante ou logo após a "blitzkrieg" que irá ser desencadeada pelos seus patrões dos EUA contra o Iraque.

A jogada geo-estratégica dos EUA com esta guerra, visa assim: 

  1. neutralizar a possibilidade futura de um eixo Rússia - China; 
  2. isolar o regime do Irão, com vista a seu eventual derrube futuro; 
  3. obter um controlo directo e permanente da região onde se concentram as maiores reservas petrolíferas; 
  4. liquidar de vez a "questão palestiniana", tendo Israel, sempre pronto a levar a cabo uma guerra contra os vizinhos menos dóceis, como cão de guarda do Império.

 

III - Consequências humanitárias e ecológicas

As guerras contemporâneas caracterizam-se por serem dirigidas contra as populações civis, mais do que contra os exércitos em contenda. 

Com as guerras mais recentes, no Golfo, Balcãs e Afeganistão, a situação ainda piorou mais: com o predomínio tecnológico militar quase absoluto dos EUA, a estratégia tem consistido da opção "zero"... zero vítimas para as forças imperiais, entenda-se. Isto inclui um tipo de bombardeamento designado por "carpet bombing": saturar de bombas uma região, aniquilando quaisquer que aí se encontrem. Trata-se de genocídios planeados friamente, acrescentando uma dimensão apocalíptica ao crime que a guerra é, sempre. No caso do Afeganistão, isso foi usado como, aliás, o foi no Vietname. 

Em relação ao Iraque, o plano de batalha dos EUA incluirá uma primeira investida de 800 mísseis cruzeiro nas primeiras 48 horas sobre Bagdade (o dobro dos mísseis que a atingiram durante toda a guerra de 91!), não deixando nenhum lugar intacto. Bagdade, segundo estimativas recentes, teria duplicado para 8 milhões nos últimos anos. As agências humanitárias da ONU, operando dentro do Iraque, apontam para 900 mil a dois milhões de vítimas directas das acções bélicas, numa população de 24 milhões. Muitas mais serão causadas pela ruptura de abastecimentos, pela ausência de água e de saneamento básico, etc. devido a fome aguda, epidemias, total ausência de socorros a feridos e doentes, etc. Este número não pode ser calculado facilmente, pois depende de circunstâncias fortuitas, mas não é exagero considerar que ultrapasse o número de vítimas directas das acções de fogo.

O clima iraquiano irá deixar uma população errante e sem meios de subsistência sob um sol abrasador, procurando refúgio em zonas fronteiriças dos países vizinhos... tão ou mais inóspitas que os desertos iraquianos. Haverá portanto uma população enorme de refugiados.

Do ponto de vista ecológico, haverá perigo de incêndio acidental ou propositado de poços de petróleo, causando fumos negros espessos, com libertação para a atmosfera de muitas toneladas de anidrido de carbono e também de partículas cancerígenas. O ar, a muitos quilómetros de distância, será irrespirável durante muitos dias. Os cursos de água, poços, pântanos (zona do sul) e mesmo o mar, ficarão seriamente contaminados. As águas não tratadas serão portadoras de doenças, desde as epidemias de cólera (mortal na ausência de tratamento médico imediato) até às doenças cancerígenas... que se irão manifestar a longo prazo. 

Cabe aqui frisar os efeitos cancerígenos e mutagénicos dos armamentos e bombas com urânio "empobrecido": na realidade trata-se de verdadeiras "bombas nucleares sujas" pois deixam aerossóis com partículas cancerígenas em suspensão. Quando inaladas, elas irão acumular-se nos pulmões e outros órgãos, causando cancro. Após algum tempo na atmosfera, irão depositar-se nos solos, tornando-os completamente impróprios para a agricultura. A população depauperada não terá outra opção, senão continuar a cultivar e consumir alimentos vegetais ou gado tendo pastado aí, sendo portanto de prever uma enorme contaminação por elementos radioactivos, especialmente trazidos pela cadeia alimentar, ao longo muitas décadas (1)

Zonas naturais de grande interesse ecológico, tais como os estuários e outras, serão muito gravemente perturbadas. Também o serão, as vastas regiões semidesérticas, nas condições climáticas que prevalecem na região, onde os equilíbrios são muito frágeis, devido às altas temperaturas do Verão e à sua secura.

O património, incluindo património classificado mundial, será arrasado de modo irreparável e sítios arqueológicos destruídos e/ou pilhados. É o berço da primeira civilização agrária e dum rico passado cultural. Bagdade é tão importante para o Mundo Árabe, como Paris ou Londres para a Civilização Europeia.

As ocorrências prováveis tidas em conta aqui, foram apenas as que adviriam sendo bem sucedidos os planos de batalha do Pentágono. O que não inclui, portanto, o alastramento da guerra a outras regiões, fronteiriças ou não, do Iraque. No entanto, podem ser considerados como prováveis, um acréscimo de repressão sangrenta, ou mesmo genocídio, por Israel, nos Territórios ocupados da Palestina, vagas de atentados terroristas em todo o Mundo, etc.

Manuel Baptista

 


(1) Os referidos isótopos de urânio têm um período radioactivo muito longo; isto quer dizer que ficará muito tempo nos solos, eliminado apenas por escorrimento do urânio dissolvido nas águas do solo para camadas mais profundas e sua "desactivação" por bactérias e outros microorganismos do solo.