HISTÓRIA DUM PAI (NÃO) ETERNO

 

Como comunistas anarquistas temos seguido constantemente com atenção - como um enviado especial acompanhante de João Paulo II - a política e a estratégia mediática deste papa. Durante os primeiros anos do pontificado dele, precisamente alguns de nós inspiraram e apoiaram os primeiros meetings anticlericais, que lançavam um grito de alarme sobre o perigo causado pela mistura de ímpeto colonizador, uso da televisão e desforra clerical que golpeou a sociedade italiana da escola à saúde e à cultura, depois do concordato. Lembre-se que este papa foi eleito após a morte - rápida e decisiva - de João Paulo I, que - logo desde os primeiros dias do seu pontificado- lançou tímidos sinais de renovação e estímulos ao Vaticano para a renúncia aos bens terrenos. Depois, pelo contrário, tudo mudou para melhor para o eterno establishment vaticano: precisava-se de indicações fortes e sem ambiguidades sobre o sentido da supremacia da religião católica relativamente às outras e do dever de ser crentes. O debate no euro-parlamento sobre as raízes cristãs da Europa demonstrou isto recentemente.

João Paulo II devia combater um "monstro" nascido da "guerra fria" (e úteis foram os financiamentos do IOR/Marcinkus). Abriu-se uma fenda publicitária pela conquista da Polónia, no leste europeu. E, naturalmente, o papa procurou tomar para si os méritos todos em relação aos derrubes dos regimes "comunistas", apresentando-se como agente no interesse da sua igreja, independentemente dos prejuízos para o equilibrio político e social mundial.

Mas o sonho da evangelizaçãoda Europa do leste quebrou-se contra a realidade de culturas que não tinham e não têm nenhuma intenção de se fazer evangelizar pelo catolicismo, e pelo contrário, aqueles paises, após anos de ditaduras estatais ferozes, estão agora nas mãos dum capitalismo desenfreado, gerido pelas máfias locais, fonte de barbarização para as próprias sociedades do leste.

Dentro da dimensão anticomunista cabiam muito bem a bênção no estádio de Santiago, onde milhares de oposidores políticos foram chacinados pelo carniceiro Pinochet, louvado como exemplo de governante catolicíssimo, o silêncio sobre o homicídio de Romero, a mordaça à teologia da libertação, que ficava próxima aos padecimentos de classe da América Latina.

Durante o pontificado deste papa, lembrado sem mérito como "pacifista", desencadearam-se no mundo guerras ferozes, e pelo menos uma delas - que ensanguentou a Europa depois de 50 anos - causada directamente pelo reconhecimento desastrado da secessão fascista e nacionalista da Croácia, que deu origem a uma feroz guerra (também) de religião. E fala-se de diálogo ecuménico!

Lembrando aqueles anos - anos de homílias de fogo contra os "ateus" responsáveis de todos os males - fazem sorrir as admoestações de João Paulo II a Bush, na tentativa de interpretar o desejo de paz de todos, chamando Bush à moderação em relação ao Iraque. O própio presidente dos Estados Unidos, de facto, é o manhoso émulo da política prepotente deste papa, anti-laico (e Bush é sempre rápido em preferir os sacerdotes aos juizes) e rápido em fazer calar com cólera qualquer murmúrio de dissensão. Lembre-se o "saneamento" feito nas hierarquias do Vaticano em detrimento de todos os que tinham algumas coisas a objectar, mandados para as fronteiras do império - e na melhor hipótese - para "servir Cristo" nalguma missão onde há muito trabalho e pouca possibilidade de ordenar. Hoje em dia basta considerar a composição do conclave: 93% dos cardeais eleitores foram nomeados por João Paulo II. Um tirano bom, um pai autoritário, um rei susceptível? Seguramente um homem que prejudicou o seu desejo de vencer por causa de perigosas alianças económicas e políticas, in primis com "Comunione e Liberazione" (CL) e todos os religiosos/managers que fizeram da subsidiariedade e de devolução uma fonte incrível de riquezas privadas e de poder. Um papa complacente com a intervenção do clero em cada âmbito por destruir a laicidade, na convicção de que cada moralidade e ética deve ser inspirada e dirigida pelos padres. Uma pessoa que agora, com a sua morte causada pela doença de Parkinson, choca decididamente com a sua imagem bem conservada e vencedora dum passado não longinquo, quando trovejava contra outra doença, a SIDA, cujo aparecimento parecia querer apontar uma sexualidade humana considerada "desordenada". 

Mas que pelo contrário abafava os escândalos, que nestes anos implicaram a igreja sob acusações de pedofilia e violência. As palavras so cardeal Ratzinger, durante as liturgias pascais - sobre a necessidade de combater a corrupção também dentro da igreja - pareciam indicativas do aproximar-se dum pesadelo para os católicos: como se a corrupção do corpo deste papa - relatada ao vivo por mil microfónes - revelasse simultaneamente todos os bubões que este mastim-mástique de deus tinha juntado a toque de bofetadas nestes 26 anos. A presença do cardeal "Ruini" perto da cabeceira do moribundo parece pressagiar duma ruína futura. O "Movimento a favor da vida" - com o seu nome hipócrita - desvela o seu significado mais profundo agora, quando o esforço para não fazer morrer este papa se tornou patético: um medo louco, o medo da morte; o mesmo medo que forçou uma mulher norteamericana - precisamente nestes dias - a dever agonizar sem autanasia por causa da loucura religiosa dos pais dela.

O medo da morte, a procura dum guia, a fusão numa massa: estes elementos misturam-se no corpo único de milhares de pessoas - chegadas em estado hipnótico adentro daquele grande magnete em forma de alicate que é a colonata de Bernini na praça São Pedro - estes elementos e o desejo de pertencer à fileiras dos vencedores são os mesmos elementos explorados pelo nosso "azul" presidente do conselho dos ministros, ele também muito hábil com as maquilhagens televisivas e capaz de silenciar os críticos dele e cada voz livre a toque de acusações e de microfones desligados.

Num mundo onde a miséria e a ignorância são exploradas por pesoas sem escrúpulos, hábeis manobradores de rebanhos e papa-hóstias na política, bem podemos compreender a preocupação de Salman Rushdie: " E porventura ... os Democráticos americanos chegarão a entender que hoje, numa América exactamente quebrada ao meio, terão um proveito maior opondo-se à Christian Coalition e aos partidários dela, e obstaculando a possibilidade que a visão do mundo de Mel Gibson modele a política social e a política americana ". Porventura, entre nós alguns consideram engraçado se o bispo Milingo tivesse a possibilidade de ser nomeado papa agora, casando-se depois .... isto mudaria alguma coisa. Pelo contrário, agora só podemos esperar que o jogo do poder escolha o seu próximo pai-não-eterno: negro fustigador em nome da doutrina da fé, ou hábil organizador de encontros interconfessionais em grupo para conquistar as almas?

3 aprile 2005

FEDERAZIONE dei COMUNISTI ANARCHICI