O que é Estado ... já esteve

 

0.  Premissa

Um dos pontos fundamentais do anarquismo histórico é sem dúvida o antiestadismo. Sem querer chegar aos excessos daqueles nossos primos longínquos (mesmo muito longínquos) que odeiam o estado mesmo quando for o particípio passado do verbo estar, e que chegam ao ponto de negar até o Estado social pela presença daquela palavrinha horrível, sem pensar no risco de cair nos braços do liberismo mais feroz, temos de considerar que muito frequentemente também para nós o conceito da necessidade de uma sociedade sem Estado leva às distorções que, a meu ver, têm a sua origem numa apressada assunção da bagagem histórica do anarquismo.

Esta bagagem, antes pelo contrário, precisa de ser contestualizada e de ser analizada em profundidade; isto em particular quando o capitalismo rampante defende a dissolução do Estado, concebido como aparato burocrático administrativo perceptor de tributos e distribuidor de serviços.

 

1.  O nascimento do Estado e o que o antecedia

Um pouco de história não fez mal a ninguém! O moloch nasce, na sua configuração moderna, há mais de dois séculos, em coincidência com a emergência da classe burguesa como nova classe dominante. Não é por acaso que boa parte das funções típicas do Estado moderno se formaram na França revolucionária de 1789. Faz sentido questionar-se sobre as razões profundas desta transformação das ordens de poder na sociedade; sobre quais relações sociais deixaram de existir substituídas por outras, sobre as mudanças ocorridas nas relações de classe e, acima de tudo, sobre as articulações do domínio da classe burguesa emergente.

1.1 As relações sociais na organização feudal

Quando os anarquistas denunciam, e com razão, os desastres que o Estado como organização burguesa da sociedade provoca nas classes subordinadas, prescindem com demasiada superficialidade da situação vivida por estas classes antes do nascimento do Estado liberal. A total ausência de regras permitia aos detentores do poder de perpetrar qualquer tipo de arbítrio contra os explorados. Uma simples reflexão monstra que esta é a verdadeira essência do poder absoluto.

Os países pobres não só eram realmente muito pobres (como agora), mas forneciam a mão-de-obra sob a forma extrema da escravidão. Nem sequer existia o conceito do direito como tutela geral, que, antes pelo contrário, na antiguidade interessara só os cidadãos livres da cidade, mas que na degeneração feudal foi restringido só aos membros da aristocracia e do alto clero. A grande maioria da população vivia numa condição de total negação da dignidade humana.

1.2 O Estado liberal e o direito

Liberté, fraternité, egalité, é o mote fundamental do Estado liberal moderno. É inútil sublinhar entre nós a hipocrisia que este esconde. Outra consideração é de nosso interesse: não é sem relevo a passagem desde uma organização social sem regras (à parte a regra dos mais fortes) para uma organização cujo fundamento formal - apesar de ser uma ficção - pretende fundamentar-se sobre regras fundamentais que se encontram acima de qualquer indivíduo. Embora tendencialmente não aplicado, o princípio existe e tem os seus efeitos apesar da arrogância do poder.

Um exemplo: a organização dos trabalhadores seria inconcebível numa sociedade feudal; e note-se: a organização, não a revolta. De facto, antes da revolução burguesa havia sempre a possibilidade de se verificarem revoluções sangrentas (e vitoriosas também), porém não era possível conquistar gradualmente porções crescentes de bem-estar. É evidente que estas conquistas são parciais, amiúde temporárias por serem reabsorvíveis (como bem vemos hoje em dia) e a única viragem incisiva é a revolucionária. Isto não elimina dois factores: por um lado, como disse Malatesta, que a ginástica das lutas é ginástica para a revolução, ainda mais necessária para os que, como nós, acreditarem numa revolução consciente, que não pode ser reabsorvida pelas pretensões de uma nova classe dominante em virtude do seu próprio saber. Por outro lado temos o facto que tudo o que hoje possa melhorar a vida das pessoas não pode ser desprezado só por não ser o comunismo libertário em si.

A sociedade liberal usa o véu do direito para se disfarçar; um véu necessário na luta contra as velhas classes dominantes e que estabelece um princípio progressivo, nos factos e nos resultados, também para as classes que ficarem subordinadas.

1.3 A participação progressiva

O solidarismo kropotkiniano, desenvolvido no terreno naturalista e etnográfico, confundiu a necessária harmonia biológica das abelhas com a discordia concors e a concordia discors típica e própria do agregado social; e cuidou-se de demasiadas formas primitivas de sociedades/associações para poder entender o ubi societas ibi jus inerente às formas políticas não pre-históricas [1].

Este pressuposto fornece duas bases de reflexão muito úteis. A primeira, diz-nos que não existe uma sociedade possível na ausência de regras: pode-se discutir (e os anarquistas o fazem) sobre a maneira de formular estas regras, sobre como individuar os que têm o poder de estabelê-las e sobre as modalidades necessárias por obter uma sua adesão universal. Mas na ausência de regras não há anarquia, mas sim a selva, que sempre penaliza o mais fracos e favorece os mais fortes.

A segunda é que, sempre e de qualquer modo, as regras têm um duplo significado: coercitivo e limitativo da liberdade individual, por um lado, e de garantia e de tutela de todas as pessoas, por outro lado. Este segundo aspecto é o que arrastou, com a força de uma corrente indesejada mas inevitável, o nascimento dos direitos inalienáveis da pessoa como consciência universal participadora no interior do esquema (tendencialmente fechado) da sociedade burguesa. É difícil pensar que isto não foi um factor de progresso do qual hoje todos podemos gozamos.

 

2.  O Estado do século XIX e o nascimento da teoria anarquista

O ponto de partida da reflexão anarquista sobre o papel do Estado, antes e depois da revolução social, foi indubitavelmente Bakunine [2]. Antes de tudo, é preciso especificar que para a compreensão do papel do Estado moderno e das modalidades da sua superação, a postura bakuninista não é de grande ajuda, por estar demasiado ligada às necessidades de uma luta contingente. Infelizmente, algumas afirmações do nosso autor, tomadas fora do seu contexto e sem qualquer esforço interpretativo, tornaram-se princípios dogmáticos do Anarquismo. É necessário sair da esfera de uma superficial assunção das palavras de ordem (causas da distorção da acção política) e por isto esclarecer algumas coisas.

A elaboração de Bakunine desenvolveu-se na última década da sua vida, no meio da sua acção dentro da Associação Internacional dos Trabalhadores e da polémica com a componente marxista. Além disso, as referências principais de Bakunine (estritamente ligadas ao desenvolvimento da luta revolucionária do grupo antiautoritário) foram Itália, Espanha, Rússia e Áustria. Deve-se considerar também o império alemão, quer pelo seu papel nascente de primeira potência continental europeia, quer pela presença no seu interior do núcleo mais forte dos antagonistas socialdemócratas.

Neste quadro foram três as preocupações imediatas de Bakunine:

  1. estabelecer definitivamente que a conquista eleitoral do Estado ou a sua transformação pelas reformas, não dão a possibilidade de chegar à sociedade igualitária e solidária;
  2. demonstrar que onde existir uma forma de poder, sempre existe uma forma de exploração e que por consequência não existe uma organização social melhor do que outra, a não ser a sociedade sem propriedade privada, sem classes e sem hierarquia;
  3. enfim, e como consequência lógica, que a organização estatal não pode nem deve sobreviver à Revolução Social.

Sem dúvida, trata-se de pontos fundamentais e distintivos de qualquer concepção anarquista. Mas Bakunine (na urgência de fixar estas coordenadas e considerando iminente o levantamento revolucionário das massas, graças ao desenvolvimento irresistível da Internacional) não achou o tempo ou os espaços necessários para uma análise aprofundada do papel que andava assumindo o Estado nos últimos quartos do século; um processo lento, contraditório e frequentemente de difícil individualização, mas seguro e irreversível. Para Bakunine o Estado è essencialmente o Estado alemão ou do czarismo russo autocrático. Por isso nem considerou o britânico como um verdadeiro Estado, por não corresponder aos critérios que ele acreditava serem os distintivos do Estado moderno: exército, polícia e centralização burocrática [3]. É evidente a distorção que implica, desde o ponto de vista teórico, confundir as organizações estatais, ou melhor definidas como centralizadas, residuais do passado, com o Estado moderno realmente existente na própria Grã Bretanha ou no Estado francês em forte transformação, embora com a herança histórica de uma centralização secular.

Para dizer a verdade, o moloch entrou na teoria anarquista a partir desta visão da centralização militar, policial e burocrática, que constituiu a forja de todas as futuras deformações e da incapacidade de adequar a análise ao assunto. Cada evolução do Estado foi interpretada como sendo um aprofundamento de ditas centralizações, o que impediu a individuação e a compreensão das novas funções assumidas pelo Estado, nem sempre negativas. Para muitos anarquistas isso causou as debandadas teóricas perante as formas de descentralização e de aparente dissolução do aparato opressivo.

Bakunine compreendeu que também o não-Estado inglês (descentralizado) era igualmente perigoso, embora a sua polémica (condicionada pela crença na proximidade da revolução e na necessidade de cancelar as ilusões negativas) incluía no mesmo conjunto formas diferentes do domínio burguês, sem apresentar as suas diferenças, as quais se referiam também às condições de vida material das massas; e às vezes, devido à perspectiva já dita, aconteceu que a ilusão democrática foi considerada até mais negativa para o desenvolvimento da consciência revolucionária do povo.

Não obstante isso, Bakunine não apareceu sempre indiferente às regras da sociedade no interior da qual se desenvolve a luta revolucionária [4]. O que confirma quanto já dito: que se trata de um aspecto não desenvolvido nas suas reflexões.

 

3. A evolução do Estado

Na segunda metade do século XIX o Estado já tinha assumido determinadas proporções (em parte não compreendida quer por Bakunine quer por Marx), mas as suas características futuras eram realmente imprevisíveis. Dois elementos devem ser examinados: a) o entrelaçamento das competências que entraram na esfera de acção do Estado e a avaliação das consequências no conjunto da organização social; b) em termos problemáticos, se o estadismo seja uma fase só negativa no desenvolvimento humano e se (por consequência) possa ser considerado como uma simples parêntese de perversão da solidariedade mútua assumida como tendência humana originária.

É evidente que as respostas não podem ser descuidadas em relação às lutas de hoje, embora dificilmente possam mudar as perspectivas finalizadas à realização de uma sociedade sem classe e, por isso, sem Estado.

3.1 O Estado empresário

Quando se fala do Estado moderno tende-se a confundir as três funções do próprio aparato estatal; funções que são muito diferentes e que não são mutuamente necessárias: a regulação do ciclo económico e a intervenção directa na economia e no Welfare. Estas características foram acrescentadas às funções do Estado durante o século XX, enriquecendo a esfera de actividade tradicional que já tinha como polícia dos interesses burgueses, que bem conheceram os revolucionários do século XIX.

Os teóricos da "tecnoburocracia" nesta multiplicação de prerrogativas viram a confirmação às suas expectativas do total englobamento da sociedade no monstro omnívoro constituído pelo Estado. Para eles a história, em perfeita continuidade com o determinismo kropotkiniano, move-se em sentido unívoco e os percursos da evolução social já são marcados, por isso as tendências existentes entre os anos '30 e '70 teriam demonstrado de modo inequívoco os resultados futuros. Trata-se de uma visão teleológica que é a outra cara da visão marxista, e ambas não percebem como a organização social seja funcional aos interesses contingentes do capital; consideram, portanto, como definitivas as escolhas que, antes pelo contrário, são reversíveis. Não é por acaso que perante a desagregação dos aparatos estatais, à qual assistimos nos últimos vinte anos, os fautores desta visão estejam debandados na teoria e gaguejem nas propostas.

3.1.1 O controlo do ciclo

A impossibilidade de prevenir crises cíclicas cada vez mais devastadoras (depois do fracasso das teorias do marginalismo[5] fez com que o capital mudasse a sua fisionomia. Durante os anos desde a quarta até à sétima década do século passado, o Estado - em precedência simples guarda dos interesses do capital (política fiscal, controlo policial, política alfandegária, etc.) tornou-se motor da economia e, por meio de um forte aumento da pressão fiscal, assumiu a tarefa de propulsor do ciclo económico (a beira de uma crise profunda) através de grandiosas obras públicas.

A consequência necessária desta nova política económica (o keynesismo) foi a expansão do mercado, essencial para absorver uma quantidade de artigos sempre em aumento, em dependência de um ciclo progressivo. Os salários tornaram-se o elemento basilar da conjuntura (fordismo) e cresceram, mas sempre ficando abaixo da produtividade, favorecida pela inovação tecnológica na organização do trabalho (taylorismo). Isto constituiu também a tentativa de reduzir o nível da luta de classe e fazer desta um instrumento de racionalização ininterrupta do sistema.

È evidente que o capitalismo inventou uma nova era em favor da sua própria prosperidade mas, ao mesmo tempo, as massas crescentes do proletariado metropolitano dos países industrializados adquiriam um acesso ao consumo de bens antes inacessíveis. No final dos anos '60, a época das lutas manifestou que tudo isso não fazia integrar de modo definitivo as classes subordinadas na lógica das empresas; em particular, desde os sectores dos chamados operários-massa partiram as primeiras contestações contra o sistema e estes sectores formaram também as bases das lutas sucessivas.

3.1.2 A gestão directa do capital

Um ulterior passo em frente verificou-se nos anos '30 do século passado. A evolução desenvolveu-se quase naturalmente, apesar de não ser necessária; tanto que não se apresentou no sistema capitalista central: o dos Estados Unidos de América. Uma leitura superficial poderia assimilar o que aconteceu nos dois mundos económicos antagonistas - o da planificação económica global (área soviética) e o da economia com endereços de planificação (a Europa capitalista). Mas, como vamos ver a seguir, as duas situações apresentam características que fazem com que estas não sejam assimiláveis. O primeiro estímulo nasce quase por casualidade no "Italietta" fascista: perante a crise de muitos complexos industriais, o regime (1933) funda o Instituto para a Reconstrução Industrial (IRI), com a missão de tomar a seu cargo as empresas ditas "decotte" (ultra cozinhadas, por causa das péssimas condições económicas e produtivas) para, depois, restitui-las ao mercado, uma vez saneadas. Ao contrário, aconteceu que o IRI apoderou-se de partes notáveis do aparato produtivo industrial e acabou por efectuar a sua gestão directa, dando assim vida ao sector das Participações Estatais. O IRI sobreviveu ao fascismo e no segundo pós-guerra tornou-se um protagonista absoluto da vida económica nacional. O êxito da sua política, apesar das asperezas do ciclo económico, graça à disponibilidade de capitais enormes, também de fonte estatal, foi tal que os laboristas britânicos nos anos '50 foram estudar a actividade do IRI e a possibilidade de o introduzir na Grã Bretanha, imitados pelo franceses e alemães. Nasce assim o Estado que directamente participa com capitais próprios na vida económica, o Estado empresário.

Bem diferente foi o caso da economia soviética, onde a gestão estatal da economia é global e não se desenvolve em regime competitivo, por causa do advento ao poder de uma classe diferente da burguesia empresarial: a pequena burguesia culta, com mecanismos próprios de extracção do excesso de produto [6]. Não por acaso derivaram disto duas tipologias diferentes de planificação económica, semelhantes só no nome.

Não é possível, nesta altura, eximir-se de uma rápida apreciação do novo papel assumido pelo Estado em continuidade, mas não como consequência, do já visto papel de regulador e estimulador do ciclo económico. Quem viveu as lutas sindicais dos anos '60 e '70 seguramente se lembra que naquela altura foram assinados dois contratos separados para os assalariados das empresas privadas e os dependentes das empresas das Participações Estatais: o segundo antecipou frequentemente o primeiro, servindo como precursor, e forçando por analogia o capital privado a fazer concessões pouco apreciadas pelos donos.

Na sucessiva época de liberismo galopante as participações estatais tornaram-se sinónimo de desperdício clientelar e, na onda desta nova fase, aquela instituição económica foi desmantelada e o seu património foi vendido a particulares. Foi assim possível que uma empresa modelo como a "Nuovo Pignone" de Florência (comprada em condições péssimas pela AGIP (IRI) e reconvertida depois para os novos tipos de produção, desenvolvendo também uma tecnologia de vanguarda) depois de ter conquistado partes relevantes do mercado mundial no sector específico e de ter chegado a ser fonte de lucros consistentes para o Estado, foi desbaratada a uma concorrente empresa/firma estadunidense, a "General Electric".

Sem dúvida uma classe de dirigentes públicos das Participações Estatais enriqueceu-se, mas também não há dúvida que os salários e as normas privilegiadas em favor dos trabalhadores destas empresas públicas foram um ponto de referência para os outros trabalhadores, aumentando o nível das reivindicações destes últimos. Nasce aqui uma dúvida legítima: isto é, que o encarniçamento na destruição do sector das participações estatais nasce do facto que se tratava de um competidor incómodo que o mundo empresarial privado queria eliminar de uma maneira ou doutra e que a verdadeira razão não era a necessidade de moralizar um sector da economia nacional. Por exemplo, a eliminação física de Enrico Mattei (presidente da AGIP e promotor de umas políticas de abastecimento de petróleo independente do cartel internacional dito "das Sete Irmãs") mesmo por parte das companhias petrolíferas, pode ser mais do que um motivo de reflexão.

3.1.3 O Bem-estar (Welfare)

O Estado, durante o século passado assumiu progressivamente o papel de provedor de serviços sociais (educação, saúde, seguros sociais, transportes, etc.). É evidente a vantagem para o patronato: transfere-se para a fiscalidade geral o inerente cargo económico com o fim de obter uma qualidade mais alta no desempenho profissional da força de trabalho e (de forma desejável) um conflito social menor. Isto não quer dizer que os trabalhadores não tivessem vantagens inegáveis, porque a alternativa não é uma pressão fiscal menor, mas sim o abandono de formas de tutela da vida social e a introdução da selva do lucro, como nesta altura andamos a ver com claridade absoluta.

Este facto é tão verdadeiro que antigamente o Welfare foi chamado "salário social" e era considerado pelas associações dos trabalhadores como uma forma de remuneração do trabalho. Devemos também considerar que embora o ensino público estivesse orientado no sentido da aquisição de um trabalho, havia outra dimensão constituída por uma tomada de contacto (e possibilidade de aquisição) com instrumentos culturais e críticos, antes totalmente excluídos às classes subordinadas. Embora os tratamentos de reforma tivessem a tendência a transferir para a fiscalidade (e por isso à sociedade) os cargos de uma mão-de-obra redundante e às vezes obsoleta, numa perspectiva diferente garantia uma alternativa ao internamento em gerocómios e à total degradação da velhice (situações das quais eram vítimas os trabalhadores subordinados); e ainda, que embora o sistema dos transportes públicos permitisse a marginalização, da mão-de-obra massivamente migrada par as cidades, nos arredores alienantes, dava a possibilidade de uma melhor fruição do tempo livre a sectores da população antes excluídos.

Temos de consider um raciocínio de curta perspectiva, isto é, o que, recusando entrar no complexo mérito da realidade (com as suas mil facetas), utiliza paralogismos baseados em ligações puramente nominais. Desta maneira, se o inimigo é o Estado, tudo o que se origina desta instituição deve ser recusado, sem considerar a existência do outro inimigo, o capitalismo, que hoje aponta para a destruição do Estado. Mas há outra insídia não menos errónea: considerando que o proletariado e o capital têm interesses antagónicos, tudo o que vai em benefício do segundo só pode ser uma desvantagem para o primeiro. Se a situação fosse esta, teríamos um paradoxo: nesse caso, dado que inegavelmente o salário representa para o patronato uma cessão menor contra a possibilidade de explorar a força de trabalho (e assim seria uma vantagem para os donos) então os trabalhadores deveriam recusar os salários! De facto, da mesma forma em que se luta (ou melhor, como seria desejável que se lutasse) para melhorar os níveis de redistribuição a favor dos trabalhadores e contra os interesses dos donos e do seu lucro, assim seria preciso um maior empenho no sentido de tornar os serviços cada vez mais úteis para as classes exploradas e cada vez menos úteis para as classes dominantes. Sem que isto signifique, obviamente, renunciar à subversão revolucionária com o fim de instaurar uma sociedade justa, livre e igualitária.

3.2 Do estado primitivo ao Estado moderno

Desde as sintéticas considerações feitas acima deriva que no último século e meio (e como podia ser o contrário?) o Estado mudou substancialmente o seu próprio papel, o seu funcionamento e a sua estrutura. Se por um lado o Marxismo - separando o papel do governo (considerado comité de negócios da burguesia, conforme o bem conhecido aforismo de Marx) e o do Estado como aparato - acabou por afirmar a utilização da máquina do Estado como instrumento revolucionário, debaixo das ordens dos novos dirigentes, o anarquismo, pelo facto de identificar as duas funções, perdeu no decurso do tempo a capacidade de fazer a justa distinção e, por consequência, a de se orientar politicamente.

 

4.  A ambiguidade do papel do Estado

Não considerando o Estado absolutista e o teocrático, expressões puras do poder de uma casta privilegiada (alvos, como vimos, da crítica de Bakunine) e ainda existentes em muitos países por volta da metade do século XIX, embora como fenómenos residuais, devemos concentrar a nossa atenção no Estado liberal, agora fortemente instalado no mundo que tem um desenvolvimento capitalista muito elevado (e o facto deste Estado representar um mal menor é bem conhecido pelos países do "terceiro mundo" ainda oprimidos por ditaduras ferozes).

Os direitos burgueses, é verdade, no concreto são ficções, e o Estado nunca é imparcial; na sociedade dividida em classes os diferentes grupos vivem e praticam até a ilegalidade com consequências totalmente diferentes na vida. Contudo, deve-se lembrar o famoso aforismo sobre o menino e a água suja, embora quando a água seja mesmo muita e o menino seja realmente pequeno. Isto por duas razões: a primeira é que em cada caso seria estúpido sacrificar o menino; e a segunda é que ajudaríamos o inimigo de classe cujo desejo é de conservar a água suja e eliminar o menino, o qual seria o primeiro a desaparecer.

4.1 O Estado na revolução

O ponto focal do contraste entre os anarquistas e os marxistas foi relativo à necessidade ou menos da sobrevivência do Estado durante o período de transição: concentração das funções por propagar e defender os resultados revolucionários, para os partidários do chamado socialismo científico; descentralização e intervenção directa do proletariado na gestão social, de maneira que possa ser assumido logo o evento revolucionário na solução dos problemas causados pela sociedade dividida em classes, para os comunistas anárquicos.

Os marxistas definiram como corporativismo a posição dos anarquistas, afirmando que o método destes últimos seria fonte de conflitos e desigualdades, e que ninguém poderia contrastar a inevitável reacção da burguesia. Os anarquistas contestaram que a sobrevivência de um poder centralizado (o Estado) não podia não regenerar uma classe expropriadora e afastar as massas da revolução. A experiência deu inequivocamente razão aos segundos, também porque se verificaram maravilhosos exemplos de solidariedade entre deserdados, sempre onde a autogestão revolucionária do proletariado teve pelo menos alguns espaços, embora tímidos, de expressão livre.

Dito isto, passamos ao mérito. Em primeiro lugar na sua justa crítica os anarquistas entraram num caminho potencialmente perigoso se não for adequadamente investigado: a solidariedade é um projecto de civilização para o qual o homem deve ser educado, e não é casual que o exemplos citados se verificaram todos onde os militantes revolucionários por mais tempo e mais eficazmente exerceram a própria influência e, portanto, as massas ficaram mais preparadas para a revolução. Dito diversamente, seria pernicioso confundir a anarquia - que é a condição final da evolução do homem (fruto de um crescimento de civilização, de consciência do próprio papel social e de sensibilidade) - com o comportamento primordial do animal homem, tosco e agressivo (ferino).

Em segundo lugar, é preciso evitar deslizamentos de conteúdo: é o poder que não deve ser centralizado; isto é, o governo e o Estado como administração de cima para baixo da #coisa pública" (poder legislativo). Pelo contrário, devem manter um carácter centralizado (naturalmente em base a um acordo livre de baixo para cima) os serviços sociais, com o fim de garantir os mesmos direitos a todas as pessoas. Os anarquistas espanhóis em 1936 não tiveram dúvidas e sabendo que a revolução marcha somente se desde o primeiro dia (nos limites do possível) tudo funcionar, desde o abastecimento aos serviços, organizaram neste sentido os trabalhadores dos serviços públicos (por exemplo dos transportes de Barcelona).

A consequência disto é que se é justo dizer que o aparato estatal burguês se derruba e não se muda (como se dizia antigamente), esta acção não deve envolver o fornecimento dos serviços sociais: ensino, tutela dos idosos e dos doentes, transportes etc. Também parece óbvio deduzir que se estes serviços já funcionarem de maneira standard para todos, para o cidadão em si, a transição dos trabalhadores do sector à uma gestão colectivizada e uniforme ficará mais fácil e eficaz do que no caso de dividir os mesmos serviços em favor dos privados em nome da lógica do lucro.

4.2 O primeiro inimigo

Os marxistas sempre pensaram que toda a evolução histórica está determinada pela estrutura (produção e relações sociais conectadas), enquanto os outros aspectos (política, cultura, guerra, etc.) são somente consequências dela, mais o menos directas, mas necessariamente determinadas (superestrutura).

Os anarquistas, pelo contrario, é verdade que pensaram que a estrutura era a fonte primária da ordem social (a história é história da luta de classes), mas que a superestrutura não fosse tão dependente, pelo facto de ter margens de vitalidade próprios, e ainda por cima que pudesse interagir com a estrutura no sentido de contribuir à sua determinação. (É necessário frisar que é estranho o facto dos marxistas desenvolverem um interesse de paroxístico para a mediação política e eleitoral, enquanto os anarquistas cultivaram uma indiferença fanática).

Voltando ao Estado, os marxistas defenderam que, uma vez que foram mudadas as relações de produção (a propriedade privada) por causa da revolução, a superestrutura estatal vai desaparecer por consumpção das funções (os trotzkistas, partindo deste axioma, falaram da URSS como Estado proletário degenerado, não admitindo que o aparato burocrático soviético efectuou a viragem total das metas revolucionárias). Os anarquistas, convencidos de que o poder pudesse regenerar outra vez a exploração inicialmente abolida (o que evidentemente aconteceu), defenderam a abolição imediata do aparato estatal, substituída por formas alternativas de associacionismo cooperativo.

Mais uma vez, o princípio era bom, mas no decorrer do tempo e da péssima propaganda contaminou-se até se tornar perigoso, ou melhor, muito perigoso. Esqueceram que o inimigo principal é a exploração do homem pelo homem (como bem sabia Bakunine), que o Estado era uma das formas históricas da sua manifestação, nem a única nem a necessária, confundiram a teoria da fase de transição com a teoria da história e proclamaram o Estado como "primeiro inimigo" (e alguns até o único). Opuseram à estatolatria marxista uma não menos obtusa estatofobia. Dito noutros temos, concentraram a própria crítica no instrumento de dominação do capital, historicamente determinado numa fase particular e específica, descuidando a dominação em si e as suas outras possíveis formas de existência, só por causa do receio que na fase revolucionária o Estado pudesse sobreviver e reproduzir a exploração.

É por isto que em muitos escritos anarquistas se vê o Estado como primeiro inimigo, acusando de cripto-marxismo quem ver na classe burguesa o primeiro inimigo. É pena que agora seja o patronato a querer a dissolução do Estado e que alguns sectores extremos do neoliberismo americano (Friedmann jr) queiram privatizar mesmo as forças de polícia, voltando assim aos "Bravos" lembrados por Alessandro Manzoni. Incidentalmente: a Máfia, ou sociedade honrada, realmente nasce como forma de controlo social e policial nos lugares de Itália onde as relações de produção caracterizadas pela exploração ficaram intactas e o Estado Unitário não estava presente nem sequer para fazer respeitar as suas próprias leis. Isto prova o que pode produzir uma sociedade sem Estado e sem igualdade económica, tanto querida pelos anarco-capitalistas norte-americanos, cujo veneno subtil foi assimnido por alguns anarquistas em doses homeopáticas que lhes mitridatizam a inteligência.

4.3 Funções colectivas e funções coercitivas

Chegando à conclusão, uma aproximação genérica e baseada na pura analogia nominal não nos deixa avançar (mas sim, nos empurra para trás). Então é preciso distinguir entre as diversas funções que o Estado moderno possui (ou melhor, que possuia antes do recente ataque neoliberista): distinguir as funções de manutenção da ordem social existente - quer no interior de uma determinada área, quer internacionalmente (chama-se Warfare) - das funções de criação de um padrão mínimo de segurança dos cidadãos (o Welfare). Amiúde estas funções cruzam-se e apoiam-se com reciprocidade, mas isto não elimina o facto de seguirem princípios diferentes: as primeiras são puramente coercitivas e não têm nenhuma razão de ser numa sociedade igualitária; as segundas apontam para uma integração social macia e apresentam papéis que, embora em forma variada, qualquer sociedade, que se queira definir tal, deve ter.

As tendências em acção fazem entrever um caminho bem diferente daquele desejado; o caminho que o capitalismo empreendeu com grande alento. A eliminação do Welfare e a manutenção (ou melhor, o potenciamento) do Warfare. Os tratados da União Europeia, o fortalecimento da Nato, o alargamento do exército profissional em Itália e em outros países movem-se todos nesta direcção. O que exclui uma diminuição consistente da pressão fiscal, pelo menos a que vai a cargo do trabalho dependente.

Pode-se até acrescentar que o desenvolvimento do Welfare marca uma estrada bem determinada; cada inversão faz o jogo do inimigo. O desenvolvimento do Welfare prepara (e não afasta) o homem para uma gestão colectiva e solidária das relações. Parece, antes pelo contrario, que para alguns supostos anarquistas o mal esteja nos sistemas públicos de saúde e de ensino, nos seguros sociais, porque é o Estado o ente distribuidor e não a exploração das doenças, do saber, ou da velhice em nome do lucro.

E não devemos esquecer que se o Estado é um obstáculo para as realizações revolucionárias e deve desaparecer desde o primeiro momento de uma fase de eventual inversão das relações de força, então o seu aparecimento histórico representou um progresso em comparação ao arbítrio selvagem precedente e o seu desaparecimento em ausência de uma transformação das relações de propriedade existentes não aproxima, mas sim afasta da meta.

 

5.  Falando de regras

O antiestadismo anarquista tem, sem dúvida, o mérito de ter orientado historicamente a atenção para os aspectos que o marxismo negligenciou decididamente: os papéis do poder político, das instituições durante e após o evento revolucionário e das classes intelectuais; a lógica interior da administração, a sua capacidade de auto-reprodução, a autonomia evolutiva da super-estrutura em condições particulares e a sua influência na evolução geral. Em todos estes sectores as aquisições anarquistas são teoricamente irreversíveis e provadas pela experiência das diferentes tentativas de construção do socialismo em base os parámetros dos vários tipos de marxismo.

Mas é necessário limpar o antiestadismo, deitar fora os vários escombros, como as interpretações amiúde demasiado superficiais. Em particular a confusão perniciosa entre o que é estatal e o que é público, entre burocracia e serviços, entre o que é do vértice e o que é do colectivo. É verdade que os serviços públicos são burocratizados e pouco abertos às exigências dos utilizadores. Mas é igualmente verdade que no dia a dia as polémicas sobre as ineficiências destes serviços, levada à frente por jornais e televisões, se tornaram instrumentais para abrir o caminho ao lucro privado. O caminho que desde os serviços públicos actuais leva à sociedade igualitária e sem classes não passa pelo capitalismo selvagem nem pelo pressuposto interesse do cidadão particular; o caminho é outro e vai no sentido contrário:

Esta é a maneira de preparar o caminho para a futura e real autogestão da sociedade e dos serviços, que compensem as desigualdades que a natureza cria entre os seres humanos; este é o verdadeiro e mais profundo significado de serviço público.

Saverio Craparo
Comité de Estudos da FdCA

Tradução de Pier Francesco Zarcone

 

Note:

[1] C. Berneri, nota inédita em P. C. MASINI, La formazione politica di Camillo Berberi, em AA. VV., Atti del Convegno di studi su Camillo Berneri, Milano 9 ottobre 1977, La cooperativa Tipolitografica Editrice, Carrara, 1979, p. 17.

[2] Não considerando a posição puramente especulativa de Godwin, para Prudhon vale o que diz Bakunine: «Proudhon, pelo facto de ter conservado só a família jurídica, foi obrigado, por uma lógica mais forte do que os seus instintos de camponês revolucionário, a reconstruir e restabelecer a propriedade hereditária, e com esta - para a contrabalançar - o Estado [...] ». Michail Bakunine, Carta à "La Liberté" di Bruxelles, em MICHAIL BAKUNINE, Opere complete, vol. VI, Edizioni Anarchismo, Catania 1985, p. 21.

[3] MICHAIL BAKUNINE, Stato e anarchia, Feltrinelli, Milano 1972, p. 38.

[4] «A revolução de 1830 e a independência deram ao Belgas a possibilidade de se dar igualmente uma [...] Constituição [que] garante plenamente a liberdade de reunião e de associação, e nenhum dos vários governos reaccionários do país teve a audácia de abolir este princípio de liberdade, embora nestes últimos anos se verificaram muitos ataques contra as greves operárias». Michail Bakunine, Istoric'eskoe Razvitie Internacionala, Cast' I. Izdanie Social'nojucionnoj Partii. Tomo II ](1873), pp.174-182, in MICHAIL BAKUNINE, Opere complete, vol. VI, Edizioni Anarchismo, Catania 1985, p. 151.

[5] Nascidas na segunda metade do século XIX, após a grande depressão de 1866, as teorias económicas do marginalismo marcaram a primeira tentativa de prever e programar o mercado que, deixado às suas próprias flutuações, causava as crises cíclicas previstas por Marx. O termo marginalismo vinha do facto destas teorias usarem o conceito de utilidade marginal, ou seja do valor que vendedor e comprador atribuem - cada um - ao bem posto à venda como último de uma série de bens ao dispor do vendedor. O marginalismo representou a entrada massiva da matemática no estudo da economia. Os expoentes principais desta escola económica foram Marshall, Jevons, Böhm-Bawerk, Menger, etc.

[6] A aquisição da parte privilegiada dos bens produzidos não se verifica em virtude do possesso dos bens de produção, formalmente em propriedade colectiva, mas do controlo burocrático do ciclo de produção-distribuição, desenvolvido por causa da detenção do saber.