ANARQUISTAS E POLÍTICA

 

Há algumas décadas amiúde no interior da Federazione Anarchica Italiana havia advertências contra um vírus que ameaçava de se estender: a "spagnolite": infecção fatal para os que não se conformarem às indicações do periódico anarquista individualista de New York L'Adunata dei Refrattari, ou que não quiserem ficar no estado de impasse daquela organização de síntese. Um vírus semelhante a uma peste ideológica. De qualquer forma aquela avaliação não foi um erro.

Nas fileiras do anarquismo italiano o vírus espanhol não se difundiu muito, ao contrário do que ocorreu e ocorre na América Latina: e em todo caso não desapareceu em Espanha, onde os anarquistas ("infelizmente" fugidos das garras de alguns "sapientes" do anarquismo, e sem muita familiaridade com a língua italiana - de maneira que eles não puderam apreender "o que verdadeiramente é o anarquismo", e tiveram de administrar-se sozinhos) tiveram a "desgraça" de fazer a única revolução proletária e libertária da Europa ocidental depois da Comuna de Paris.

O número de Setembro de 2003 do mensal Tierra y Libertad (órgão da Federação Anarquista Ibérica) publicou um artigo intitulado "Algumas considerações sobre a política", que desenvolve o assunto, está desenvolvido numa maneira substancialmente igual - por muitos dos nossos anarquistas italianos (e não só), mas seguramente não pelos comunistas anarquistas - ao arremesso duma pedra dentro de uma poça de água dormente: ou seja, o artigo recusa a tese da equivalência entre anarquismo e apoliticismo.

O autor do artigo, o camarada Julián Vadillo Múñoz, escreve:

"Evidentemente, no caso se entender a política como conquista do poder do Estado, o anarquismo rejeita isto totalmente. (…) Mas o facto de rejeitar o Estado como instrumento de domínio não quer dizer que o anarquismo recuse o poder. Embora a coisa soe estranha, o anarquismo tem uma concepção do poder e governo. Para nós ambos os postulados deveriam ser organizados numa perspectiva horizontal. O governo deve ser totalmente democrático, e por isto o poder deve residir onde fica a sua origem: no povo e somente no povo. Não se concebe a possibilidade de intermediários permanentes numa sociedade anarquista (como os parlamentários). Mas a destruição do sistema capitalista não acontece dum dia para o outro, (...) Por isto aqui adoptamos os postulados de Errico Malatesta: para ele a transformação social desenvolve-se paulatinamente, criando organismos suficientes para desmontar com efectividade as velhas instituições. Isto não tem nada a ver com a fase transitória da ditadura do proletariado, como propõem os marxistas, porque a organização anarquista é descentralizada claramente e visando à destruição do Estado. (…) É evidente que todos estes procedimentos pertencem a uma esfera clara: a da política. Por isto nós os anarquistas somos políticos e actuamos na política, e não devemos ter medo de o dizer. Evidentemente criticamos a política, mas como instituição profissional. (…) Para os anarquistas a revolução não deve ser conduzida pelos profissionais, mas pelo povo mesmo. A gestão não deve ser atribuída a pessoas alheias aos problemas da gente, porque isto provocaria um elitismo que colide com a essência política do anarquismo. O anarquismo é organização, o que deve ficar claro. (…) o anarquismo fica regulado pela disciplina mais efectiva que é o compromisso individual de cada um, como factor fundamental para um bom desenvolvimento social. (...) O anarquismo é político porque representa uma opção clara a favor da nova ordem social perante as outras correntes políticas". (1)

E este camarada também reafirma a necessidade dum dualismo organizativo entre organização sindical e organização política (no seu caso a Federación Anarquista Ibérica).

O recente congresso anarco/comunista de unificação da CUAC chilena, reivindicou o Poder Popular e num documento enviado às organizações revolucionárias anarquistas, numa óptica concretamente política - os camaradas da Organización Libertaria Cimarron do Uruguai sublinharam que as categorias teóricas e a acção do anarquismo devem estar conectadas à análise da realidade concreta dentro da qual a prática libertária se desenvolve. E que devem ser assumidas também as contradições que nascem da actividade política desenvolvida dentro da sociedade contra a qual se combate, que não é a sociedade libertária desejada pelos anarquistas.

Esta observação poderia aparecer banal, se não implicasse uma série de problemas importantes para a teoria e a história do anarquismo; particularmente os problemas concernentes às situações onde o anarquismo ascendeu (não conhecemos o futuro) ao nível de movimento de massa.

É fácil responder preliminarmente que as considerações que vamos apresentar ficam distantes a anos-luz da realidade, se considerarmos o estado actual do movimento anarquista no mundo. Não se esqueça que por causa desta situação geral George Woodcock acabou a sua história do anarquismo falando da derrota da revolução espanhola, afirmando o esgotamento da capacidade revolucionária anarquista:

"Eu fixei o limite desta história da anarquia no ano 1939. A data foi escolhida de propósito: foi o ano da morte, em Espanha, do movimento fundado há duas gerações por Bakunin. Hoje há ainda milhares de anarquistas espalhados em muitos países do mundo. (…) Mas eles são somente o fantasma do movimento anarquista histórico, um fantasma que não inspira nenhum medo aos governos, nenhuma esperança aos cidadãos e não interessa os jornalistas. Claro está que como movimento o anarquismo falhou". (2)

O quadro não é falso nos seus termos substanciais: podemos dizer que considerar definitiva a situação presente exclui a priori toda a possibilidade de melhores desenvolvimentos futuros, agora não previsíveis: trata-se de possibilidades futuras que na história humana muitas vezes se apresentam inesperadas aos olhos dos próprios historiadores profissionais. Contudo, Woodcock menciona uma frase - atribuída por alguns a Makhno e por outros a Arshinov - que contém as possibilidades virtuais dum renascimento do anarquismo, pelo menos enquanto existirem seres humanos pensantes:

"Olhem nas vossas profundezas (…). A verdade não se encontra em qualquer outro lugar." Nesta insistência sobre a interdependência de liberdade, realização da justiça e da moralidade, sobre a impossibilidade da existência duma delas sem a outra, está a lição essencial do anarquismo autêntico". (3)

De qualquer forma, aqui não interessa muito o problema do hiato entre o movimento anarquista de outrora e o de hoje. Com referência à Espanha, que Woodckock menciona, deve sublinhar-se uma vez mais qual foi uma característica dos anarquistas daquele país empenhados na luta de classe e nos projectos de revolução social: eles elaboraram progressivamente programas articulados de modelos novos de organização dos diferentes sectores sociais, tentaram entender quais fossem os mecanismos "técnicos" da produção e as mudanças necessárias; assim que, chegada a hora da revolução, souberam bem o que deviam fazer e como garantir a continuidade técnica/económica na administração das estruturas básicas da sociedade, industriais e agrícolas. O que sem dúvida permitiu ao movimento anarquista espanhol dar respostas concretas sociais e económicas aos contraditores e às pessoas susceptíveis de ser convencidas, sem fazer somente ostentação de enunciações de princípios filosóficos ou de conversas evasivas da realidade.

* * *

No nível da política as coisas são sempre mais complexas.

Diz-se que aos anarquistas lhes falta uma teoria da política, quer antes quer depois da revolução. E o problema da política para os anarquistas assume a sua valência mais ampla à luz daquela experiência espanhola que, pela fortíssima presença libertária, representa uma lição obrigatória cheia de elementos fundamentais, tão nos aspectos positivos, como negativos.

"Em Espanha a política e o poder manifestaram-se como elementos não equivalentes. Os anarquistas que tinham o poder real, não faziam política. (…) Isto significa que a gestão do existente e as mediações não estão necessariamente ligadas ao domínio: não é bastante desenvolver uma acção em proveito próprio. O poder em si não é produtor de política, a qual pelo contrário é aquela ciência e prática, que administra - em proveito de quem a exercita -, as relações de força expressadas pela realidade. (…) Os comunistas não tinham, em Julho de 1936, poder nenhum: mas eles tinham uma política. Os anarquistas, pelo contrário, desenvolvendo a revolução contra o poder existente e contra a reformação dum outro possível poder, eram também autores duma acção contra si próprios. Em resumo, eles - recusando-se como poder - activavam uma política adversa à realidade de poder expressada pela sua própria existência. (…) A experiência espanhola demonstrou que uma revolução social é a negação do poder, mas não do poder no seu estado puro, como relação imediata de força. (…) Deriva que a política é insuperável, principalmente se houver uma situação revolucionária espontânea, onde a expressão evidente do poder que existe nas relações de força implica a necessidade duma acção de adaptação a este estado de coisas. Manifesta-se assim que a dimensão espontânea do social não pode absorver a demanda duma orientação geral do movimento emancipador". (4)

Para quem conhece os acontecimentos espanhóis, o discurso é claro: e conhecem-se os erros políticos catastróficos cometidos quando o aparelho estatal se desmoronou e as relações de força estavam favoráveis aos anarquistas: eles (ou alguns deles) consideraram possível controlar a situação só em termos de "ditadura anarquista", que devia ser evitada como a peste. A solução foi entrar no governo republicano burguês!

O facto é que o uso dos nomes não é nunca indiferente ou casual; e enquanto no movimento anarquista houver usos sinonímicos de termos diferentes como poder, autoridade e domínio, com o complexo do risco iminente de violar tabus ou de lacerar o véu de Isis, existirá sempre uma cegueira política, causadora da perpetuação de erros prejudiciais. Uma sistematização interessante destes conceitos, na óptica anarquista, deve-se a Amadeo Bertolo, que ofereceu os instrumentos para acabar com uma confusão linguística intolerável e perigosa. 

Bertolo distinguiu três situações diferentes, às quais atribuiu nomes correspondentes e adequados:

  1. poder como função social reguladora, ou conjunto dos processos pelos quais a sociedade se auto-regula produzindo normas e aplicando-as, fazendo-as respeitar;
  2. autoridade como assimetria de faculdades e capacidades de decisão típicas duma complexa divisão social do trabalho em funções e papeis diferentes;
  3. domínio como monopólio do poder exercitado por uma minoria, política/económica que excluir deste exercício real todo o resto da sociedade.

Estabelecidos os conceitos, deriva que o propósito básico do anarquismo consiste na destruição do domínio; mas poder e autoridade são funções sociais neutrais, não elimináveis também numa sociedade libertária. (5)

Se a política - da qual objectivamente não se pode prescindir nem sequer numa fase revolucionária - por definição implica as relações de força, então deve-se verificar além de dogmatismos, reverências teóricas, esquemas historicamente datados, etc. o que é que realmente faz parte do DNA do anarquismo, e o que é que - pelo contrário - ameaça realmente a mesma razão de ser deste projecto político. O que implica também estabelecer os elementos que podem existir dentro do anarquismo sem prejudicar a sua coerência interior.

Em boa substância precisa-se dum tipo de fenomenologia da realidade onde se desenvolve o trabalho político e social - e não das possibilidades de construção abstracta da mente humana - para estabelecer uma ligação operativa entre teoria e prática. Contudo, devemos ter bem presente que também as teorias que quiserem modificar a realidade afinal são sempre "verificadas pela praxe", e não têm auto-justificação.

Que a luta contra o domínio e até mesmo a rejeição conceptual deste, pertençam à própria razão de ser do anarquismo, fica absolutamente fora de qualquer discussão. O domínio, em síntese, é a exploração do homem pelo homem e há alguns séculos acha a sua forma social no binómio Estado/capitalismo. O poder, como vamos dizer depois, é algo diferente. A luta radical contra o domínio é fundamento da revolução social autêntica. Fora disto há só empurrões para a substituição duma classe social dominante por outra, com uma participação mais ou menos ampla de massas que, em todo o caso, ficam súbditas.

Mas lutar significa oposição também violenta, contra os dominantes que não querem deixar o seu poder e até preferem confrontar-se numa luta de morte, forçando amiúde os próprios revolucionários para além das intenções originárias. E na fase da revolução (pouco antes e durante) resolve-se um dos lancinantes problemas teóricos que causaram enormes derrames de rios de tinta na história do anarquismo: se o indivíduo é auto-suficiente ou se precisa do conjunto social. Solução em favor da segunda opção. 

Implicando a revolução social a destruição das velhas estruturas - construindo a autonomia e a administração directa duma sociedade já não mais organizada em classes, nem dominada por aquela instituição separada e dominante que é o Estado - deriva disto que os oprimidos de ontem devem ter a capacidade de levar ao cabo o que os opressores não quiseram fazer e que não querem fazer enquanto tiverem o poder nas suas mãos. Em relação a este objectivo - como aconteceu aos sanculottes franceses, a Makhno na Ucrânia, na Catalunha e em Aragão durante a revolução espanhola - precisa-se também e principalmente, de milícias populares armadas, de patrulhas de controlo etc. Precisa-se dum instrumento aborrecido pelos anarquistas que não devem, podem, ou querem, fazer a revolução mas que, por outro lado, as massas constituem e usam com a efectiva consciência revolucionária delas: a coerção contra o inimigo de classe para evitar ficarem vítimas duma coerção contrária (à maneira de Franco ou Pinochet, para nos entendermos bem). 

Uma metáfora aparentemente cínica pode aclarar este ponto: quebrar os ovos para fazer a omeleta é instrumental; gostar de quebrar os ovos, independentemente das omeletas, é uma doença mental. Quer as experiências históricas do século passado, quer as aquisições modernas das "ciências humanas" deveriam conduzir-nos a uma revisão profunda de muitas (e persistentes) certezas optimistas do pensamento anarquista "clássico" que, debaixo da influência forte de esquemas abstractos, privilegiava automatismos e simplificações. Por exemplo, o "Programa dos Anarquistas" de 1920 e muitos escritos de Malatesta, apresentam o quadro duma revolução que "em tempo real" derruba o tirano/Estado e põe as bases duma sociedade libertária, que se defende com uma certa "facilidade" ou "desenvoltura" contra os dissidentes nostálgicos do regime burguês e os contra-revolucionários. Mas depois nós tivemos: leninismo/estalinismo, fascismo, nazismo, experiência trágica em Espanha, expansão internacional do domínio das máfias e das multinacionais, capitalismo globalizado, império USA, etc. E também temos a distante - e frequentemente esquecida - lição de Etienne de La Boetie (6) sobre a servidão voluntária, os estudos psicológicos sobre a parte irracional da psique humana e a formação/desenvolvimento do imaginário colectivo feitos por Castoriadis (7), o "mistério" da proliferação de situações objectivamente revolucionárias às quais não correspondem as condições subjectivas. Elementos todos que complicam o quadro simplista delineado pelas análises do anarquismo de antes da guerra. Está agora fora de qualquer discussão o facto que uma revolução social deve se confrontar com uma série de factores que não fazem dela um evento instantâneo, mas sim um processo de duração não breve, porque esta não deve se enfrentar somente com o Estado e as instituições do capitalismo. O tirano não está sozinho: também estão com ele - além dos mercenários do exército e da polícia - as massas de cidadãos (e aqui joga pouco o facto de eles serem também as vítimas da opressão) que temem a liberdade, estão emaranhados em mecanismos ideológicos e psicológicos que fazem deles instrumentos do domínio e carne para canhão a favor dos dominantes. Também estas massas são o inimigo e elas podem sê-lo com maior ferocidade do que o próprio tirano.

Há um humanismo anarquista que aponta e justamente, para a emancipação dos seres humanos enquanto tais: mas trata-se simplesmente dum ponto de chegada. O ponto de partida é a luta dos oprimidos contra os opressores e os seus instrumentos e cúmplices. E o fulcro da opressão está nas relações de classe. A luta revolucionária dos oprimidos e a saída insurreccional não interessarão à maioria dos oprimidos: será só uma parte deles que irá gerir o momento revolucionário contra o resto da população. Também em Espanha aconteceu assim. A revolução é por excelência um evento violento e de coerção contra os partidários da ordem vigente. E consoante o grau de intensidade da reacção contra-revolucionária, este evento terá uma duração menor ou maior, implicando por sua vez uma intensidade diferente na acção defensiva/ofensiva dos revolucionários e de satisfação das necessidades inerentes (em Espanha, durante a guerra civil, os revolucionários foram forçados a constituir também serviços de contra-espionagem devido às infiltrações do inimigo). Naturalmente há o problema de não superar os limites além dos quais existem a renúncia à identidade libertária e a constituição duma "ditadura revolucionária." A revolução - na sua fase de revolta armada - é o momento culminante da luta de classes. Luta que se estrutura quando começa a se consolidar numa acção de força contra os inimigos. Luta que expressa a rejeição da opressão e das suas estruturas. A luta de classes não é nunca precedida por votações para verificar se houve ou não um consentimento da maioria do povo. Simplesmente, alcançado um certo grau de intolerância, alguns explorados decidem dizer "não" à ordem social que os explora. Cria-se então uma contraposição de acções e forças para alcançar a prevalência dos interesses dum sector da sociedade com prejuízo dos interesses doutro sector.

As forças ocupadas na luta contra a exploração - quando o desenvolvimento da luta tiver alcançado níveis elevados quantitativa e qualitativamente - determinam uma espécie de "espaço" onde construir os elementos da sociedade nova; e então luta-se também para estender este espaço e, como evento final, realizar o espaço social tout court. Neste "espaço social revolucionário" formam-se as estruturas de contra-poder que se tornam cada vez mais operantes na medida em que o aparelho estatal/capitalista se debilitar; aqui nascem os organismos de gestão popular, de reorganização da sociedade que obram como instrumentos das massas populares para combater os inimigos de classe. Demolidas as precedentes instituições políticas, desfalecido o poder do Estado, o poder popular espalha-se no espaço revolucionário e por sua vez aumenta-o. A metáfora do espaço social revolucionário é útil para compreender também o problema da política libertária durante a revolução. A defesa da revolução é a defesa deste "espaço." Na fronteira externa, a acção política e militar será a mesma de sempre: milícias populares, luta sem trégua contra o inimigo de classe e aplicação da justiça revolucionária. Para evitar as degenerações ditatoriais de matriz leninista, o lado mais delicado é o interior. Aqui será indispensável a constituição de um poder popular baseado na democracia directa, política e económica (o que não é ditadura de partido), e o envolvimento maior possível das massas populares na defesa/construção da sociedade revolucionária. A luta contra cada tentativa de monopólio na revolução deve ser desenvolvida sem hesitações. É aqui que entram em jogo as relações de força às quais tem de corresponder a acção política. O "Programa dos Anarquistas" que previa "para toda a gente a liberdade de difundir e experimentar as próprias ideias - tendo como limite só a igual liberdade de cada qual" corresponde à uma laicização dos mito dum optimismo milenarista que, se não o podemos excluir absolutamente, pelo menos deveria ser projectado para uma dimensão temporal que não está próxima. No "espaço revolucionário" esta liberdade pode ser efectiva somente para os sujeitos deste espaço, senão podem ficar frustradas as conquistas revolucionárias e a própria defesa da revolução. A revolução implica a) uma liberdade em relação à exploração e ao domínio; b) e uma liberdade para a realização pessoal e social no " espaço" libertado, agora sem exploração nem domínio, nas formas e modos que as massas revolucionárias preferirão. Se fosse permitido que estas formas e estes modos incluírem também a restauração do que a revolução derribou, ou anda a demolir, simplesmente iria cometer-se um suicídio. Não eram suicidários os marinheiros revolucionários e libertários que em 1921 em Kronstadt se rebelaram contra a tirania bolchevique: eles pediam "a liberdade de palavra e de imprensa para os operários e os camponeses, para os anarquistas e os partidos socialistas de esquerda"(8) e com base nisto novas eleições livres nos sovietes. Não para o inimigo de classe militarmente derrotado há pouco tempo! De facto, quem queira restabelecer o domínio e quem seja cúmplice do domínio fica automaticamente fora do " espaço revolucionário" e, por isso, da sociedade libertária. Neste "espaço" não actuam só os anarquistas (nem sequer em Espanha, embora o movimento anarquista fosse potentemente de massa, aconteceu isto). Assim numa situação com pluralidade de sujeitos revolucionários - possivelmente acrescentado por forças burguesas contingentemente aliadas contra um inimigo comum, mas nem por isso revolucionárias - o problema da política põe-se com referência aos objectivos da hegemonia; de facto, sem hegemonia como se podem influenciar os eventos? O objectivo da conquista/defesa da hegemonia implica uma dialéctica de alianças e, no fundo, uma luta que deveria ser desenvolvida lembrando os princípios da acção libertária no quadro da revolução (e não só). Porém, o problema não se esgota numa relação simplesmente binária: quer dizer "fins/princípios-meios"; mas ternário: "fins-princípios/meios/situação particular onde se realiza a obra".

Fins e princípios determinam uma identidade: mas nenhuma identidade fica colocada num meta-histórico limbo; pelo contrário, a obra desenvolve-se e actualiza-se em relação à existência histórica no esforço de realizar os seus próprios objectivos. Fins e princípios permitem determinar as rotas navegáveis nas águas dum mar que é totalmente outra coisa em relação aos fins e princípios. E se a capacidade de construção herética é parte essencial da tradição anarquista, no seu desenvolvimento como parte fundamental do movimento de emancipação dos trabalhadores, para chegar à emancipação de ser humano como tal - então tem sempre razão Camillo Berneri quando escrevia "um anarquista não pode senão odiar os sistemas ideológicos fechados (teorias que são chamadas doutrinas) e dar aos princípios um valor relativo" (9). Relativo, em boa substância, não significa "violável a prazer", mas expressa a exigência de uma correlação com outro termo: termo esse que é a situação histórica efectiva. Tornar os princípios - que na substância são pontos de referência da identidade, sem os quais se perde o caminho - num vademécum operativo bom para todas as ocasiões e circunstâncias, expressa um prejudicial fundamentalismo "legalista", que leva à ilusão perigosa de poder adaptar ao domínio dos princípios uma realidade multíplice e dinâmica, a qual tem uma vida autónoma e espontaneamente não quer se conformar a tais princípios. Se não fosse assim, isto significaria que as coisas já estão arrumadas (ou podem ficar arrumadas) e que o triunfo da revolução está muito próximo. Por isto, afinal, não se deveria perguntar tanto se o anarquismo pode morrer fazendo mediações com a realidade (e a realidade não é ainda anarquista), mas se morrer quando não faz assim e se fecha na ilusão duma pureza sectária, ou quando se conforma demasiado à realidade, confiando a esta última o papel directivo da acção. Se a luta contra o domínio for um princípio/fim não eliminável para o anarquismo, porém não se deve esquecer a lição de Berneri (revisionista porque queria ser um anarquista do seu tempo): que a liberdade é inseparável duma relação contínua com as condições postas pela necessidade; porque a liberdade não é só tensão e esforço individual, mas também ciência das ligações que conectam a acção humana com um determinado contexto histórico. Portanto, o fazer-se da liberdade é "relativo" à necessidade, e o específico elemento distintivo do anarquismo aparece determinado pela tensão para eliminar o domínio e reduzir a autoridade nos limites da necessidade. (10) Por causa dos limites da necessidade, nas situações concretas geralmente e especialmente nas revolucionárias para os anarquistas, é de importância extrema alcançar uma avaliação correcta do sentido de marcha dos eventos. Se estes - por causa duma já existente força da organização do movimento de luta dos oprimidos, e duma eventual posição hegemónica dos anarquistas - permitirem apontar depressa para uma ordem libertária da sociedade, será totalmente contraproducente renunciar a dar um golpe decisivo às estruturas de domínio, estatais e capitalistas, sob o pretexto de não exercer uma coação contra alguns aliados ocasionais. Mas também numa hipótese semelhante, a necessidade queria (11) que o programa revolucionário dos anarquistas tomasse em consideração as condições históricas nas quais se trabalha, incluindo as tradições e características do povo que faz a revolução. Pode ser, aliás, que a situação, embora desenvolvida em condições revolucionárias, implique um processo evolutivo para alcançar os objectivos e uma luta política. Se os anarquistas quiserem vencer esta luta, será necessário ter claro quais são as forças em jogo e os obstáculos que elas podem interpor e de que modo será possível eliminar ou rodear os obstáculos. Nesta óptica incluem-se também as "dissidências" e resulta importante entender quais as que têm um carácter verdadeiramente contra-revolucionário e quais não. Tudo isto mantendo os pés bem assentes na terra. Quando, pelo contrário, a revolução não está absolutamente à ordem do dia, as polémicas entre "ortodoxos" e "heterodoxos" podem florescer com tranquilidade: elas têm o efeito de clarificar as posições de cada um. A política dos anarquistas não se esgota na luta contra as instituições existentes, que são modalidades operativas das estruturas de domínio e exploração. Ela também inclui a luta pela construção doutro tipo de sociedade, cujo ponto máximo de chegada reside na substituição das políticas pela administração. Ponto de chegada, objectivo que deve ser realizado e que por isto implica uma tensão dialéctica passando por contradições e antinomias e não uma passagem imediata, porque o projecto precisa da realização de várias premissas básicas. Sendo um elemento fundamental da política a capacidade de alcançar os próprios objectivos, a política anarquista não pode prescindir da instauração de alianças e colaborações tácticas com grupos e forças não anarquistas, sem ter medo de perder a própria identidade e pureza. Exceptuando o facto (filosófico) que não se dá nenhuma identidade senão pela interrelação com os outros (assim como o senso do "eu" se formar pelo encontro com muitos "tu"), necessários para o desenvolvimento da identidade mesma - a renúncia às alianças tácticas equivale à renúncia ao exercício de sinergias, sem as quais a esterilidade e o encerramento se tornam, cada vez mais, causa e efeito recíprocos. As alianças simplesmente devem ser avaliadas nas ópticas binárias do possível/impossível, ou perigoso/não perigoso, com referência quer aos objectivos estratégicos dados, quer às situações objectivas, quer à exigência (em nada irrelevante) de se fazer conhecer por esferas sociais mais largas, com o propósito de difundir as suas próprias ideias. Também aqui o elemento distintivo fundamental está na posição do aliado eventual com respeito ao binómio domínio/liberdade ditadura/autonomia. As alianças/convergências operativas contingentes devem ser feitas antes de tudo com as realidades que praticam a auto-organização e que no seu próprio interior expressam a tendência a lutar contra o despotismo. Mas isto não pode ser completamente um elemento de exclusão. Também com forças reformistas - mas sem preconceitos anti-anarquistas - será possível instaurar relações contingentes, ou seja de colaboração táctica, em circunstâncias dadas. É com os inimigos do anarquismo, com aqueles que - se tiverem a possibilidade - voltariam de boa vontade à prática do fuzilamento dos anarquistas; é com os inimigos radicais da liberdade que uma aliança significaria trazer água aos moinhos alheios, água que volta atrás envenenada.

Pier Francesco Zarcone

 

NOTAS

(1) J. VADILLO, Algunas consideraciones sobre la política, em Tierra y Libertad, n.182, Setembro de 2003, pp. 14-15.
(2) G. WOODCOCK, L'Anarchia, Milano 1976, p.414.
(3) Ibidem, pág. 421.
(4) G. BERTI, Il pensiero anarchico dal Settecento al Novecento, Manduria 1998, p.855-856.
(5) A. BERTOLO, Potere, autorità, dominio, em Volontà, n.2, 1983, pp. 51-78. 
(6) E. de LA BOETIE, Sulla servitù volontaria, Catania 1978.
(7) C. CASTORIADIS, La rivoluzione democratica. Teoria e progetto dell'autogoverno, Milano 2001.
(8) I. METT, 1921: La rivolta di Kronstadt, Roma, 1970.
(9) G. BERTI, op.cit., p. 858.
(10) Ibidem, pp. 867-875.
(11) Ibidem, pág. 876.